Matéria do Jornal ESTADO DE MINAS
Caderno Fim de Semana
Domingo, 2 de Fevereiro de 1992
Por Mirtes Helena
Celso Fortes de Almeida e o Xamanismo
Formado em Medicina, Celso Fortes de Almeida abandonou todos os seus conhecimentos teóricos para se embrenhar por um estranho caminho: o Xamanismo, a medicina primitiva dos pajés. Em Agosto de 91, ele participou, no Estado de Dakota do Sul, nos Estados Unidos, de um antigo ritual indígena chamado Sundance. Com dois estiletes atravessando sua pele acima dos mamilos, ele dançou durante horas ao som de tambores até o momento de arrebentar a pele, já que, destes estiletes saem cordas que são amarradas numa árvore. “Eu me tornei um osso vazado para que o Grande Espírito pudesse trabalhar através de mim em prol dos que necessitam”.
O Ritual, mostrado no filme no filme “Um homem chamado Cavalo”, tem o objetivo de purificar as pessoas e torná-las mais aptas e equilibradas para a cura. O sangue derramado, oferecido à mãe terra, segundo ele diz, é devolvido em harmonia e luz aos que se submetem ao ritual. Celso Fortes passou pelo Sundancena reserve indígena de Rosebud, aquela onde foi feito o filme “Dança com Lobos”.
EM – Celso, você se formou quando em medicina?
Celso – Eu me formei em Dezembro de 1978, pela Faculdade de Vassouras no Estado do Rio.
EM – e você chegou a clinicar, a exercer a profissão?
Celso – Eu cliniquei em estágios durante a faculdade, fiz meu último ano de Medicina, o internato, em Nefrologia, no Hospital Cardoso Fontes, no Rio e fiz minha residência como oficial médico da Marinha em Psiquiatria.
EM – O que faz um médico formado, com conhecimento cientifico, que conhece os antibióticos e as técnicas modernas, partir para o Xamanismo, que é o que h’de mais primitivo em Medicina?
Celso – Não vou responder como médico e sim em termos pessoais. Fui levado pela minha ânsia de conhecer mais o ser humano, pela minha ânsia de poder lidar com o homem vendo-o como um todo e não apenas o lado físico, que é simplesmente matéria. E essa matéria acaba.
EM – Você começou trabalhando com cristais, não foi? E por que você embarcou no Xamanismo?
Celso – antes mesmo dos cristais já havia um questionamento interior meu. Eu achava que não era só aquilo que meu pai e minha mãe me ensinavam através da religião. Eu achava que se Deus é puro amor ele não podia castigar.
EM – como você define o Xamanismo?
Celso – É a arte de curar mais primitiva que existe e a gente acredita que essa arte foi dada ao ser humano diretamente por Wakan Tanka e pela Mãe Terra. Wakan Tanka é Deus.
EM – fale mais sobre essa medicina, o que há em comum entre as curas praticadas nos diversos povos.
Celso – No início dos tempos, quando os homens começaram a se reunir em clãs, começaram a aparecer às doenças e a necessidade de cura, ainda que fosse por mordida de animais, por exemplo. E as diversas tribos espalhadas no mundo inteiro tiveram que desenvolver a sua própria medicina. E no momento em que o homem começou a migrar de um lugar para outro e trocar informações, começaram a descobrir que a forma de cura era a mesma. O que diferenciava eram os objetos que eles usavam para a cura, os instrumentos variavam de região para região. Por exemplo, nos Estados Unidos, trabalha-se muito com penas e garras de gavião e águia. Em outras partes do mundo se trabalha com garras de tigre, com marfim. Aqui no Brasil penas de arara e gavião.
EM – O fato de enxergar o ser humano como um todo seria também um ponto comum entre essas tribos?
Celso – exatamente isso. Nenhuma dessas tribos ditas primitivas vêem o ser humano sob o aspecto só físico. Todas o vêem como um ser superior que possui outras dimensões. Por isso a invocação de espíritos no momento da cura.
EM – Como foi que o Xamanismo apareceu na sua vida?
Celso – Eu diria que isso apareceu durante e minha vida inteira segundo eu vim a descobrir há pouco tempo, quando eu já trabalhava com os cristais eu fui passar um mês na fazenda da doutora Elisabeth Kübler-Ross, uma médica americana mundialmente conhecida pelo seu trabalho com bebês aidéticos. Para surpresa minha, em Agosto do ano anterior, em 90, ela havia recebido dos seus guias uma mensagem dizendo que ela não deveria agendar nada para o mês de Janeiro, que ela ficasse na fazenda aguardando um homem que iria chegar do Brasil. Em Outubro de 90 ela viajava para a Suíça, de onde recebe outro aviso para comprar um determinado cachecol para dar de presente a esse homem brasileiro. Ela obedeceu, ficou comigo o tempo todo na fazenda e realmente me deu de presente o cachecol. Na véspera de sair da fazenda, eu ouvi um tambor tocando a noite toda e fiquei muito impressionado. Eu iria para o Arizona par conhecer uma mulher que até então, para mim, era médica que trabalhava com astrologia e cristais. Ao chegar lá, quando eu salto do carro com o cachecol que a Kübler-Ross havia me dado, essa mulher ficou paralisada e eu até fiquei sem graça. Ela me explicou que ela também tinha tido um aviso: que aguardasse um homem que iria chegar do Brasil portando um arco íris. Curiosamente, ou coincidentemente – se é que coincidências existem – o cachecol que a doutora Elisabeth me deu era um arco íris. Eu vim a descobrir lá que essa mulher que trabalhava com cristais era descendente dos índios xeroquis.
EM – Até aí você não sabia que ela era descendente dos índios.
Celso – Não sabia nada, absolutamente, trocamos informações sobre nossos trabalhos com cristais e descobrimos que trabalhávamos exatamente igual, para surpresa nossa. Então ela acabou de me contar a historia da Mensagem do Guia que a mandou aguardar o homem que portasse o arco íris . Ela deveria oficialmente introduzi-lo na cultura nativo americana.
EM – Foi a partir daí que você começou a passar pelos rituais indígenas? Fale um pouco desses rituais, mas não fale agora do Sundance, que esse eu quero que você fale depois.
Celso – Eu passei pelo Sweat Lodge, que é uma sauna ritual, na casa desta mesma mulher. Nesse ritual aconteceram coisas incríveis, eu tive visões fantásticas dentro desta sauna. Antes de eu embarcar para os Estados Unidos eu tive um sonho aqui no Brasil em que eu me vi amarrado pelo peito preso a uma árvore. Lá, ao conversar com o índio que foi conduzir o ritual, ele me disse que isso era um convite para o Sundance, mas que eu pedisse confirmação no Sweat Lodge, uma vez que o Sundance envolvia sofrimento físico. A confirmação me foi dada, ele me colocou em contato com o Medicine Man, o pajé, que conduz o Sundance. Eu vim para o Brasil e voltei para os Estados Unidos de novo em Julho para participar de cerimônias de cura conduzidas por esse pajé. Passei por um outro ritual chamado Vision Quest, que pode ser traduzido como “em busca da visão”. A gente é colocado no alto de uma montanha e fica lá sem qualquer comunicação, sem água e sem alimento, apenas segurando o Cachimbo da Paz. Eu fiquei 24 horas nesse lugar. Já foi uma preparação para o Sundance.
EM – E quando foi que você participou do Sundance?
Celso – O ritual dura oito dias, sendo que os quatro primeiros são de purificação, quando nós passamos pela sauna ritual uma vez por dia. No quarto dia, a gente vai em caravana para buscar a árvore que vai ser o centro do Sundance. A árvore é escolhida pela mulher do pajé que conduz o ritual, há toda uma cerimônia, duas crianças dão as duas primeiras machadadas, a árvore é levada no ombro até o local do Sundance, a arena, sem deixá-la tocar o chão. Lá, o pajé amarra nessa árvore objetos sagrados, coloca instrumentos sagrados também no buraco onde a árvore será fincada. Então os que vão participar do ritual se aproximam da árvore , amarram nela suas cordas, ela é levantada com o auxilio de nossas cordas, às quais seremos mais tarde amarrados. Dentro da tradição, não se come e nem se bebe nada durante os últimos quatro dias do ritual.
EM – Mas fale sobre o Sundance propriamente dito.
Celso – A gente acorda às quatro horas da manhã no dia posterior ao do corte da árvore, passamos por uma sauna de purificação, trocamos de roupa, colocamos roupas especiais, para o Sundance e iniciamos o ritual às cinco e meia da manhã, quando começa a ficar rosado. Ou seja, quando o sol aparece no horizonte, já estamos todos na Arena dançando ao som dos tambores.
EM – Mas e a história de furar o peito e fincar estiletes?
Celso – Pois é. Durante os últimos quatro dias de ritual, a gente pode escolher ficar preso à árvore pelo peito durante uma etapa, um dia inteiro, dois até quatro. Eu fui espetado no terceiro dia. A gente deita no sobre um pelo de búfalo e, com um bisturi – descartável – devido ao problema da Aids – eles furam o nosso peito em dois lugares transpassando a pele de um lado a outro…
EM – Explica onde são esses furos.
Celso – São logo acima dos mamilos onde são colocados os dois estiletes. Neles são amarrados as cordas que já estão presas à árvore.
EM – E estes estiletes são de que?
Celso – podem ser de madeira, de osso ou de chifre de alce, que foi o meu caso.
EM – E a partir daí vocês ficam dançando amarrados pela corda à árvore, mas presos pela pele. É isso?
Celso – É isso. Os estiletes, os pinos, são amarrados por uma corda à árvore. A gente deve ficar dançando, puxando o corpo pata trás esticando a pele. É a pior dor do ritual.
EM – E qual é o significado do ritual para eles?
Celso – Agradecer o ano vivido e pedir abundância e saúde para o ano vindouro.
EM – Eu quero saber por que tem que haver o sofrimento físico?
Celso – O sofrimento físico está em todas as culturas.No oriente também há rituais em que as pessoas se espetam. O sofrimento purifica. Isso vem de milênios. Guardadas as devidas proporções o próprio Cristo ofereceu seu sofrimento em prol da humanidade. No ritual do sundance, a gente não pode pedir nada de pessoal.
EM – O que é que você pediu Celso? A gente pode saber?
Celso – Eu pedi a Mãe Terra que me ajudasse no meu equilíbrio entre as polaridades masculina e feminina, uma vez que esta é também uma das finalidades do ritual.Eu queria ser mais inteiro para ajudar melhor as pessoas que se aproximam de mim.
EM – E por que é que tem que romper a pele?
Celso – Originalmente, apenas homens podiam fazer o ritual, porque através do Sundance, você oferece o seu sangue à mãe terra para que ela nos devolva a sua parte feminina e nos equilibre mais. Ficamos mais à disposição do Grande Espírito, tornando-nos um instrumento dele. As mulheres não participavam porque elas já davam seu sangue mensalmente à mãe terra. Elas não precisam passar pelo ritual. Além do sofrimento que um parto envolve.
EM – onde e quando você fez este ritual?
Celso – Aconteceu em Agosto de 1991 no Estado de Dakota do Sul, na reserve indígena de Rosebud.
EM – É a tribo do filme “Dança com Lobos” não é?
Celso – É a tribo que deu origem ao filme, onde foi rodado o filme.
EM – Além da dor o que foi que você sentiu neste ritual?
Celso – A dor física durou relativamente pouco. Eu rezei muito, fiquei olhando para a árvore, é como se uma luz, uma energia de amor indescritível tomasse conte de mim. A memória de dor que eu tenho é muito pequena.
EM – E o que mudou na sua vida após o Sundance?
Celso – Tudo…
EM – você ganhou mais poder, Celso, para ajudar as pessoas?
Celso – Eu tenho muito medo da palavra poder porque na história do mundo, o poder deturpa o ser humano esse poder que eu posso dizer que eu ganhei, ao mesmo tempo não me pertence, não está no meu domínio. Pertence aos espíritos das quatro direções, a Wakan Tanka e a Tunkasila, Deus pai e Deus filho na cultura indígena.
EM – Eu quero saber o seguinte. Você trabalhava com cristais. Depois que passou pelo Sundance você utiliza rituais e instrumentos diferentes no seu processo de curar as pessoas?
Celso – Eu continuo trabalhando com cristais e com resgate de alma, dando workshops sobre Xamanismo por todo Brasil. O que eu inclui no meu arsenal de instrumentos de trabalho são as penas que eu usei no Sundance e uma asa de gavião.
EM – Hoje, quando você está trabalhando, está tentando ajudar alguém no processo de cura, você se torna um pajé? Você incorpora um pajé?
Celso – Não, eu não incorporo. Eu trabalho com um pajé, com ajuda dos espíritos, com os animais de poder, os guias. Eu mantenho a minha consciência o tempo todo, apenas entro em estado alterado de consciência para ver as coisas em outras dimensões.
EM – Não é estranho ser um pajé numa cidade grande? Você não teria que ficar em contato com a mata, seus espíritos, a natureza?
Celso – Eu só estou aguardando a oportunidade de me mudar para um sítio onde eu possa desenvolver um trabalho maior junto à natureza, onde eu possa conduzir os Sweat Lodges, já que eu fui autorizado a isso depois do Sundance.
EM – Outra coisa estranha: você é brasileiro, nasceu em um pais rico em termos de natureza, cheio de florestas, matas e índios. Por que é que você teve que sair daqui para buscar essas coisas nos Estados Unidos?
Celso – quando a gente fala em alma, é bom dizer que alma não tem nação, não tem pais, não conhece limites. Em termos de conhecimento de Xamanismo não há fronteiras. O aprendizado não é pedido, é alguma coisa fora de controle da gente, da ansiedade, do desejo. Eu fui levado.
EM – Mas você tem interesse em conhecer coisas do Brasil, os rituais dos índios brasileiros?
Celso – O interesse existe porque aqui os pejes também desenvolvem um trabalho grande. Mas como eu disse , não é algo que a gente escolhe.
EM – Você falou várias vezes aqui que “se sentiu chamado”, “os guias pediram”, os guias mandaram”. Como é que esses guias se comunicam?
Celso – Os guias falam principalmente através da intuição. No momento em que eu trabalho com a energização e a harmonização de chacras – que são portas de energia no corpo das pessoas – eu tenho um contato mais direto com os guias. Na maioria das vezes é intuição, algo que vem do nosso lado feminino e que tem sido deixado de lado devido à cultura que vivemos. Os sonhos também são um caminho e, através deles, estamos livres do pensamento desejoso. O desejo está diretamente ligado ao ego, à necessidade que o ser humano tem de aparecer.